Solidariedade tem fronteira


O quanto você está disposto a sair da sua casa e ajudar uma cidade cujas casas foram destruídas de uma hora para a outra?

Depende. Esta provavelmente será a resposta da maioria. E, realmente, depende de muitas coisas. A começar pela distância. Alguém se mexeria para ajudar uma população a 10 mil quilômetros de distância? E a mil quilômetros...? Cem...!?

Acredito que o desejo de ajudar exista, mas a distância é um fator complicador. Seria tão bom se montassem uma barraquinha de doações na esquina de casa, no posto de gasolina mais próximo, na escola dos filhos, sei lá! Qualquer lugar, desde que seja no meu trajeto.

Admitamos: a solidariedade tem fronteiras. Infelizmente.

Esta conclusão tão óbvia, e aparentemente inútil, bateu à minha porta depois da madrugada do último dia 6 de abril. Sim, na noite em que milhares de pessoas sentiram suas casas serem engolidas pela terra. Naquela madrugada, 290 pessoas perderam a vida numa área onde viviam cerca de 60 mil pessoas. É como se todas estas pessoas morressem, em Vinhedo (no interior de SP), numa só noite e, para piorar, as que sobrevivessem não pudessem voltar para suas casas, suas escolas, negócios, comércio, nada. Mais de 50 mil pessoas simplesmente não têm para onde ir!

Se você não está na Itália, a vontade de ajudar estas pessoas ainda depende, pois L'Aquila não é Vinhedo e está, sim, a quase 10 mil quilômetros de São Paulo, capital. Sem contar que a tragédia foi causada por um terremoto, situação que o Brasil jamais viveu além de pequenos tremores, aqui e ali. E tomara que não viva! Quiçá ninguém mais vivesse isso, mas o Planeta está vivo e ainda vai se mexer muito, engolir muitas casas, matar muita gente, por água, terra ou fogo.

Não sei como o resto do mundo viu a tragédia que abateu sobre L’Aquila, mas aqui, na Itália, o país parou diante da televisão e das bancas de jornais. A onda de solidariedade é tão grande e tão pulverizada que um grupo de estudantes de informática e seus professores centralizaram as ações solidárias em um site para facilitar a saída de mantimentos, dinheiro e até voluntários. Quer doar alguma coisa? Está tudo ali! Como doar para as crianças, para os deficientes, como doar dinheiro, roupas. Tudo com seus respectivos telefones de contato e/ou contas bancárias.

Mas a região carece de mais! Carece de esperança, de perspectiva, de vida! Por isso, foram enviados psicólogos para atender às crianças. Algumas perderam a família inteira. Outras, perderam colegas. E todas, absolutamente todas, estão aterrorizadas e sem perspectiva de um futuro próximo. Não têm escolas, nem brinquedos, nem alegria. Só um monte de tendas e fogões improvisados. As crianças feridas são assistidas pelos “Doutores da Alegria”.

As instituições se movimentaram rapidamente e, em poucas horas, acampamentos já tinham sido montados com medicamentos, camas, roupas, alimentos e água.

Cada pessoa retirada com vida era um milagre celebrado com lágrimas, principalmente pelos “Vigili del Fuoco” (bombeiros), homens que trabalharam os últimos quatro dias sem descanso. E 30 pessoas ainda estão desaparecidas...

Já a Cruz Vermelha (Croce Rossa) centralizou o gerenciamento de voluntários. E são muitos que estão dispostos a deixar suas casas e irem até L’Aquila.

O Correio está doando a taxa de 1,10 euro para as vítimas do terremoto. Esta é a taxa que os Correios cobram para receber os pagamentos de diversas contas, como luz, telefone e impostos.

A Telecom Itália já disse que ninguém da Província de L’Aquila terá que pagar as faturas deste mês, pois elas foram perdoadas (também, era só o que faltava, hein!).

Pessoas das cidades vizinhas estão recebendo em suas casas, moradores desabrigados. É o mais próximo de um lar que eles têm, hoje. Nem as escolas e hospitais puderam ser usados como abrigo. As rachaduras condenaram os prédios. O mesmo aconteceu com centenas de construções civis e públicas, assim como dezenas de patrimônios históricos.

Uma das cenas mais dramáticas de hoje é a de um bombeiro beijando o caixão de Antonio. O bebê de cinco meses colocado sobre o caixão da mãe. Se eu ainda estivesse no Brasil, certamente teria chorado ao ver este cena ou o do menino de dois anos, que morreu abraçado à mãe, que ainda usou o próprio corpo para tentar salvar a criança.

Mas, estando aqui, o que sinto (e todos sentem) é mais que uma tristeza, e chorar é pouco. Falta esta explosão que precede o chôro. O coração parece não bater. O aperto no peito chega a nos deixar sem fôlego, é uma dor "atingível", se é que me faço entender... o ar tornou-se mais denso, como se a poeira que sufocou tantas crianças até a morte, estivesse por todo o país.

Estando aqui, a notícia do “Terremoto in Abruzzo” não é apenas uma página nos jornais ou uma entre dezenas de notícias na televisão. A tragédia em L’Aquila não é UMA notícia. É um fato, um marco. As Tvs italianas cancelaram os programas de entretenimento. As lojas fecharam as portas, às 11 da manhã desta sexta-feira, durante o funeral das vítimas.

No meio de tanta tristeza, existe espaço para a revolta. E como! Em uma área sísmica como L’Aquila, as construções modernas deveriam ter uma estrutura especial e não tinham, a exemplo do hospital construído em 2003 que, embora não tenha ido ao chão, foi totalmente danificado. Quem o construiu? E por que não o fez devidamente?

O dormitório dos estudantes universitários, que desabou sobre centenas de jovens (matando dezenas deles), apesar de “novo” também não era anti-sísmico.

E o físico que avisou que a terra iria tremer em L’Aquila e não lhe deram ouvidos? Acreditando em seus estudos, Giampaolo Giuliani tirou a família de casa às 23h, quatro horas antes da catástrofe. O que dizem agora as autoridades?

De tudo isso, e mesmo estando a 500 quilômetros de distância de L’Aquila, posso dizer, com certeza, que a minha visão de vida, de risco, de futuro e de responsabilidade, mudaram. E essas coisas só acontecem quando se está num perímetro de risco, ou no raio da “solidariedade”.

A quem você é solidário? Esta é a pergunta que deixo para uma perfeita reflexão de Páscoa.

A Páscoa, aliás, terá o verdadeiro significado para os sobreviventes de L’Aquila, este ano. Será, realmente, tempo de renascer. De reconstruir, readaptar, reestruturar e refazer, que é o que eles mais querem. A força e dignidade com que estas pessoas reerguerão suas casas vai surpreender o mundo. Mas elas não o farão sozinhas. Terão muita ajuda, mas os culpados terão que pagar. E espero que paguem.

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