Vivendo em Londres: Refém da mãe natureza
Já testemunhei terremotos, enchentes, tempestades e, agora, furacão! De acidentes naturais, estou com a minha cota completa e passo a senha adiante. Não preciso de mais nada para consagrar a natureza como nosso maior inimigo natural. Embora eu tenha visto a tempestade São Judas da segurança do meu lar, assistir as árvores ao lado da minha janela balançar por horas, não me serviu de consolo.
O alerta sobre o mau tempo começou alguns dias antes. A pior tempestade desde o ciclone que devastou parte do Reino Unido, em 1987, atingindo também a França, cairia sobre Londres na noite de domingo, 27 de outubro. E eu nem sabia de nada. Estava animada demais com a minha semana de férias que estava começando, para “perder tempo” com notícias.
No exato domingo, estava feliz e contente na casa de alguns amigos, almoçando uma deliciosa feijoada vegana (com linguiça de soja) e batendo papo, quando percebi o céu, antes azul com poucas nuvens, se tingir de cinza chumbo. Comentei, inocentemente, que parecia que ia chover. “É, tem tempestade com ventos de até 100Kmh prevista para esta noite”, falou meu amigo, com um ar ligeiramente preocupado. Seu filho estava na Noruega e voltaria a Londres no dia seguinte. Não gostei muito da notícia, mas negligenciei o aviso em prol de mais algumas horinhas de lazer.
Chegando em casa, fui me informar sobre a tempestade e a previsão era para começar à meia noite. Pouco depois da hora marcada, nada de chuva, nada de vento. Aliviada com o fracasso meteorológico, relaxei os ombros e terminei de assistir ao meu seriado, com fones de ouvido para não acordar o resto da casa (filho é tão bom quando dorme!). Os fones não me deixaram ouvir quando a bendita coisa começou, de verdade, mas pouco antes da uma da manhã, ouvi minha filha me chamar (estranho como funcionam os sentidos de uma mãe). Ela reclamou do barulho e eu disse que era apenas a chuva, mas ela não se contentou e (abusadamente) quis dormir no meu quarto. Só então, percebi que havia algo mais lá fora além de chuva. Aliás, chuva mesmo, era pouca. O rumor era um chiado estranho e contínuo. Era o São Judas chegando, mas o meu sono foi maior que a curiosidade. Deixei o santo lá fora e fui dormir.
Quatro da manhã, desperto com um som insistente, como se um secador de cabelos gigante estivesse soprando em meu ouvido. Pulei da cama e, finalmente, abri as cortinas. O que eu vi pela imensa janela do meu quarto não era tempestade. A chuva até que não era grande coisa, mas o vento... tudo estava balançando, do lado de fora. Os galhos roçavam uns aos outros, violentamente, emitindo um som quase como um pranto, enquanto as árvores pendiam de um lado para o outro. O vaso de plantas da vizinha do andar de baixo, por sorte, estava bem preso ao suporte de madeira, mas ele girava como um relógio desgovernado, fazendo círculo incompletos, mudando a direção. Coisa mais estranha!
Corri para a sala e, pela janela, olhei a rua deserta. Pude ver as placas de trânsito balançando; as folhas das árvores entravam e saíam do meu campo de visão em segundos. Mas o barulho ainda era o que mais me impressionava. Embora as janelas tenham vidros duplos, o som do vento era perturbador. Peguei meu celular para gravar o som e, estupidamente, abri uma das janelas com a intenção de colocar o aparelho do lado de fora para gravar. Santa ingorância! O vento abriu a janela com força e, esta foi a minha sorte. A janela é muito firme, difícil mesmo de ser aberta. Apesar disso, a lateral foi empurrada pelo vento e aberta totalmente sem que eu fizesse nada. Segurei firme meu celular com medo de que o vento entrasse e o agarrasse da minha mão! Deixei-o em um lugar seguro e voltei para fechar a janela novamente. Só então, quando coloquei a mão para fora para puxar a janela, senti um pouco a força que reinava do lado de lá do vidro.
As horas se passaram comigo indo e vindo da cama para a janela e da janela para a cama. Não conseguia mais dormir e agradecia pela solidez do prédio e pelas janelas duplas! Agradeci por estar em um país onde não existe morador de rua ou criança embaixo da ponte. Abracei a minha filha, do meu lado e quase chorei de alívio.
Às seis da manhã, voltei pela décima vez para a janela e vi uma das cenas que mais me impressionou. Havia um corvo vindo na direção contrária do vento, tentando alcançar um galho de árvore a dois palmos de distância. Ele estava, praticamente, parado no céu! Suspenso, embora batesse as pesadas asas. Torci para que ele tivesse energia para mais algumas batidas e fiquei ali, alguns segundos, com a respiração suspensa também, torcendo por aquele pobre animal, até que ele se agarrou ao galho. Suspirei e, antes de sorrir para ele, o vento o arrastou. A ave rodopiou pelos ares, dando cambalhotas no céu. E não foi o único. Minutos depois, aconteceu a mesma coisa com outro corvo.
De manhã, tive que sair para um compromisso. Era uma linda manhã de céu azul, mas os rastros da ventania não foram apagados pela calmaria. Placas caídas, galhos quebrados, galões de lixo revirados no meio da rua e folhas por toda parte. Por sorte, iniciava-se a semana de férias escolares (as escolas fecham por uma semana a cada 45 dias, mais ou menos) e as crianças poderiam ficar em casa, seguras. Ainda bem, porque todos os trens (sim, todos!) foram impedidos de circular, na cidade de Londres. Sem ter como atravessar a cidade, muitos trabalhadores ficaram em casa, também, para prejuízo de muitas empresas.
Dizem que os ventos foram em torno de 114kmh, o que é pouco comparado aos 280kmh (com picos de 346kmh) registrados pelo furacão Katrina, em 2005, nos Estados Unidos e, embora não tenha sido tão devastador quanto este e nem a tempestade de 1987, no balanço final, o São Judas causou dezenas de árvores caídas, pelo menos treze mortes e voos cancelados pelo nordeste da Europa, como na Grã Bretanha, Holanda, França, Alemanha, Dinamarca e Noruega, entre outros.
No meu balanço pessoal, fica o registro de mais uma experiência nada agradável com a certeza de que somos como reféns insignificantes diante da força avassaladora desta gigante invisível chamada Natureza. E se você acha que são adjetivos demais, espere até ficar frente a frente com ela. Esperamos que não!
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