Desencontros em Wall Street
Phil Todd afrouxou a gravata do
colarinho engomado que adornava o seu pescoço há exatos vinte e cinco anos. Ele
olhou para o imenso edifício envidraçado atrás dele sabendo que seria a última
vez que passaria por aquela porta giratória que ele mesmo acompanhara a
instalação oito anos antes. Medo e euforia se debatiam dentro do seu peito. Era
o fim de um longo casamento com a estagnação. Aos cinquenta e
três anos, Phil tinha pela frente escolhas a fazer e ele estava se borrando
todo por isso.
Começou a se distanciar do antigo
escritório com os mesmos passos apressados de sempre quando se deu conta de que
não havia mais necessidade de correr. Correr para onde, porra? Phil havia
adicionado mais um à lista dos desempregados americanos. Os dedos transpiravam
em volta da alça da valise de couro preta surrada, agora mais leve sem o notebook da empresa. Ele parou por um instante no cruzamento com a Pearl Street e se deu
conta do fluxo de ternos e tailleur se movimentando freneticamente evitando
contato visual e físico. Era hora do almoço, mas Phil não tinha fome. Havia
anos que não fazia uma refeição decente durante o dia e seu estômago havia se
habituado a isso. O que ele realmente desejava era um scotch. Por que não, cara?
Seguiu até o Fraunces Tavern, foi
ao balcão e pediu um Bernheim. A quem diga que a bebida cheira a baunilha e
caramelo. Phil não dava a mínima para o cheiro, até porque ele não sentia
cheiro de porcaria nenhuma desde que passou a fumar mais de um maço de cigarros
por dia. O que ele mais ansiava era pelo sabor quente e adocicado lambendo sua
garganta e atingindo o estômago como uma micro explosão atômica expandindo
rapidamente o seu abdômen.
O primeiro gole serviu para
varrer aquela sensação de engasgo que a demissão lhe causara. Phil nunca foi
homem bastante para expressar fúria ou decepção. Ele sempre acreditara no
diálogo polido e aqueles merdas do Recursos Humanos tinham um discurso que não
deixava brechas para discussão. “Sr Todd,
sentimos muito se a nossa decisão administrativa lhe causa algum inconveniente,
mas teremos o prazer de fazer uma carta de recomendação a altura dos anos
servidos a esta empresa. Sabemos que o seu longo e positivo desempenho na
empresa lhe abrirão portas para um futuro igualmente promissor. Nós acreditamos
que é importante que as pessoas tenham a chance de ter novas oportunidades,
vivenciar diferentes experiências que são sempre uma marca importante em um
currículo profissional”. Fodam-se.
Entre uma azeitona e outra, Phil
remoía as últimas palavras do diretor com quem trabalhara ombro a ombro há dois
anos. Ele não notara o burburinho crescente no restaurante nem o perfume doce
da loira que passara ao seu lado em direção ao toilet. Só o que pensava era que merda ele faria agora. Suas
economias foram destinadas a pagar as faculdades das duas filhas. O salário
estava comprometido até o talo com a hipoteca da casa e as despesas da família.
Phil nunca contara à esposa que fizera um empréstimo para pagar aquele cruzeiro
em família quando ela completara cinquenta anos. Martha queria levar não só as
filhas, mas os noivos das gêmeas, os pais dos noivos e a mãe dela – Phil era um
dos poucos que adorava a própria sogra, ele tinha que admitir —. Tudo pago por
ele. Mas, foda-se, pensara ele na época. Afinal, para que serve o trabalho duro
se não para aproveitar um pouco a vida?
Phil já estava na terceira dose
quando uma sensação anestésica começou a tomar conta dos seus pensamentos. Se
ele estivesse falando com alguém, certamente teria dificuldades de pronunciar
palavras como explicitamente e procrastinação, mas quem as usaria, de
qualquer forma? Se estivesse em mais uma reunião de negócios com certeza, mas
não estava. E não tinha a menor ideia de quando estaria, novamente.
O pensamento o fez rir. Primeiro,
internamente, como apenas um espasmo no estômago. Depois, como um riso baixo e
incontrolado. Quem o visse de longe, viria apenas um sujeito com a cabeça
baixa, as pernas largamente abertas no banco de couro e as costas arcadas
sacudindo. Não haveria como dizer se o cara estava chorando ou rindo. O riso de
desespero saía fino como um hi hi hi descontrolado.
Do que o cara estava rindo, nem ele mesmo sabia. Às vezes, dizia o seu falecido
pai, é melhor rir do que chorar. Que bosta de conselho. Ou sábio. Phil não
sabia, muito menos naquela hora.
Enquanto ria, Phil atraiu a
atenção da loira que voltava do toilet.
Phil? Chamou ela, colocando a mão
delicadamente no ombro dele. Ele se virou e os olhos turvos de tanto chorar de
rir o impediram de reconhecer a vice-presidente do departamento de contas da
empresa de onde ele acabara de ser demitido. Phil era um dos subordinados de um
dos subordinados dos subordinados dela. Como
ela sabe a porra do meu nome? Foi a primeira coisa que o cérebro embriagado
de Phil pensou. E o pior é que eu não
faço ideia da porra do nome dela! Hahahahaha, gargalhou Phil com os seus
dois pulmões de fumante. Uma onda de tosse catarrenta se seguiu. Phil batia com
os punhos no balcão enquanto ria e tossia. A bela loira sem nome o ajudou a se
recompor dando ligeiros tapinhas nas suas costas. Os olhos de Phil agora viam
somente a turva silhueta daquela misteriosa mulher que sabia o nome dele.
Deus do céu, quem é você? Conseguiu perguntar a ela. Janet,
surpreendentemente (outra palavra que Phil não conseguiria pronunciar), lhe
respondeu, o que não causou nenhum click na mente de Phil. Ela poderia dizer
que era Melania Trump que não faria a menor diferença. Naquele instante, Phil
percebeu que ele estava acabado. Percebeu que havia jogado seus anos de
juventude fora dedicando-se ao trabalho, à esposa e às filhas. Não havia tirado
um dia para si mesmo. Não ia à academia, nem fazia corrida ou caminhada. Não
era o modelo de saúde que via nos filmes, revistas e anúncios de televisão. Um
merda, isso é o que ele era. Um merda fracassado. Um merda desempregado. Phil
só não chorou de verdade porque ainda lhe restava um pingo de decência por
baixo da aparência bêbada. A dignidade, porém, não evitou que ele começasse a
enrolar as palavras em frases desconexas sobre como fora descartado depois de
nunca ter faltado um dia no trabalho ou se atrasado; sempre fizera horas extras
sem reclamar e tudo em troca de quê? De
uma porra de casa de cinco quartos, dois dos quais quase ninguém usa, um
barco que eu também não velejo desde o verão de 2014, três carros de luxo (o
quarto carro na garagem havia sido comprado com o próprio salário da filha, dia
em que Phil se sentira mal por não ter ele mesmo dado a filha, embora o orgulho
que ela sentira dela mesma fizesse os olhos dela brilhar de emoção)? O
que eu vou fazer agora? Hã?
Para Phil, só de pensar em ter
que recomeçar já lhe causava enjoo. O que nada tinha a ver com as incontáveis
doses de Bourbon, obviamente.
Janet continuava sentada ao lado
dele com um olhar de culpa que Phil ignorava. Você é muito bonita, sabia disso? Claro que sabe... você é casada, tem
namorado ou alguém? Claro que tem, não é? Quem não tem, hoje em dia? É tudo tão
fácil. Difícil mesmo é manter. Manter o emprego, manter a saúde, manter a
performance, o corpo sarado, como dizem os jovens. Eu não sou o tipo de pessoa
que mantém nada disso. Sou casado há vinte anos e já tive dois casos longos e
inúmeras trepadas corriqueiras. Minha mulher também teve um caso, então, não
podemos falar um do outro. Phil pegou o copo e levou à boca, mas ele estava
vazio. Porra, preciso de mais um gole.
Não, Phil, você precisa sair daqui. Precisa se recompor e tudo vai
parecer melhor quando este porre acabar. Disse Janet com a voz firme
esperada de uma mulher em um cargo disputado à unha pelos homens de Wall
Street.
Quando este porre acabar, meus problemas vão estar só começando... como
é mesmo o seu nome? Espera... eu vou conseguir... é.... Janet, certo? Há! Não
estou tão bêbado assim. E suspirou. O nome, agora, sim, o fazia se lembrar
de algo. Janet... eu conheci uma Janet
alguns anos atrás. Ela era bonita como você, mas morena. Tinha lindos cabelos
castanhos até aqui, ó (mostrando a própria cintura). Ela era... ela era... deliciosa. Tinha um cheiro delicioso. Um corpo
firme e quente. Janet era... foi... sei lá, ainda deve ser... a mulher que
eu...
Phil se calou encarando o copo
vazio em sua mão, perdido em lembranças de antes de entrar para o círculo
vicioso que virara a sua vida. Janet, a doce Janet, com quem viveu os últimos
anos de faculdade, com quem experimentou sexo a três pela primeira vez e todas
as loucuras que os privilegiados se permitem viver quando ainda são jovens.
Janet, a mulher que o abandonou para um curso de mestrado na Inglaterra.
Janet... por onde andaria ela?
Phil deu uma segunda olhada para
a loira ao seu lado e cedeu ao impulso de beijá-la, mesmo sabendo que ele seria
rejeitado, por isso a puxou com força contra os seus lábios. Ela tinha gosto de
whisky. Ou seria o seu próprio gosto misturado ao dela? O beijo durou mais do
que ele esperava. Então, ela o empurrou delicadamente e passou os lindos e
delicados dedos pelo lábio inferior como se eliminasse o excesso de batom. Eu não sou a sua Janet, Phil... Eu sei, disse
ele, virando-se para o copo vazio. Não
mais, sussurrou ela antes de se levantar e sair sem se despedir.
Mergulhado em sua embriaguez,
Phil não processou rápido o suficiente as últimas palavras que entraram em seus
ouvidos. Elas escorregaram para um lugar onde, talvez, um dia ele teria acesso.
Talvez.
Janet... e se eu tivesse ido à Inglaterra com você, hã?
Phil empurrou o copo para longe,
levantou-se, pegou a valise e percorreu o caminho de volta para casa,
anestesiado, sem querer pensar em como contaria à sua família sobre mais aquela
derrota ou sobre como e quando começaria a procurar um novo emprego. Janet o
observava à distância. Ele era encrenca. Ela
era encrenca. Apesar do prestígio profissional, Janet não era uma mulher por
quem ninguém deveria se apaixonar. Volte
para a sua família, Phil. Volte para a sua vida, você pelo menos tem uma.
Quando Phil desapareceu da sua
vista, Janet baixou a cabeça e pôs-se em direção ao décimo segundo andar do
alto edifício envidraçado de onde Phil acabara de sair, do sétimo andar. Como
eles nunca se encontraram antes? Como ela não sabia? Como ele não sabia?
Esta é uma estória a ser contada.
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