A vida não cabe em um chip



Houve um tempo em que guardávamos tudo na cabeça, mas eram outros tempos. Menos informação e menos idade, também! Aos meus 20 e poucos anos, eu sabia de memória a placa do carro de todas as pessoas que eu conhecia. E quando eu digo todas, eram todas mesmo! Amigos, parentes, vizinhos, colegas de trabalho, até ex-professores! Não tinha muita utlidade, eu sei. Bastava olhar para o motorista! Mas, por mania mesmo, eu sempre olhava para a placa do carro primeiro, depois para quem estava dirigindo. Vai entender!

Além das placas, tinha todo o resto na cabeça: números de telefones, senhas, endereços, datas, nomes, CPF, RG, etc. Podia-se dizer que meu HD funcionava perfeitamente e minha memória se expandia cada vez mais. Que maravilha! Os anos se passaram e números para guardar foram aumentando. Senhas bancárias (pelo menos três), senhas de emails (no plural sim!), de Facebook, MSN (e muitos etceteras) se somavam aos já antigos registros de telefones, data de aniversário e... as malditas placas de carro.

Meu pequeno processador começou a falhar. “É a idade, a gente vai se esquecendo das coisas mesmo...” me diziam. Não, não é a idade. Recuso-me a admitir isso. É o mundo moderno! Hoje estamos atrelados a números e códigos mais do que podemos suportar. Mas, para a felicidade de todos, a tecnologia também avançou e as agendas em papel, pouco a pouco, adquriam formatos, cores e tamanho diferentes e cada vez menores. Eletrônicas, claro.

Apesar de ser uma amante da tecnologia e do moderno, sou um tanto teimosa, cabeça dura para certas coisas. Levo um tempo para me adequar às mudanças. Mas, me sucumbi a tudo. Aos poucos, fui esvaziando minha cabeça e passando centenas de números para aquelas pequenas caixas maravilhosas. Meu último aliado foi meu celular. Ah, meu lindo e branquinho Sony Ericsson Xperia. Quem diria que, um dia, eu poderia fazer uma chamada internacional, via internet, do meu celular, sem pagar nada! Viva o Skype, viva Steve Jobs que mudou o nosso conceito de telefone!

Meu Xperia, meu braço direito! Ele sabia tudo sobre mim, meus amigos, clientes e parentes. Guardava as melhores fotografias dos meus filhos, que as exibia com orgulho para cada nova pessoa que eu conhecia. Coisa de mãe chata mesmo, coruja de suas crias e saudosa, muito saudosa de quem está a muitas milhas de distância. Fiz até uma capinha para ele! Em lã, renda e cetim. Ficou um luxo... ah ficou! Afinal, eu tinha que protegê-lo do frio e das quedas (sim, sou um tanto desastrada). E, falando em frio, quantas vezes foi ele quem me avisou que ia chover ou nevar!

Ah, meu Xperia. Que fim deu ele? Foi furtado três dias atrás. Dentro do supermercado enquanto eu passava as compras pela esteira. La se foi grande parte da minha história de vida, minhas senhas, minhas mensagens, minha privacidade! A culpa foi minha, eu o deixei apoiado em um canto da esteira enquanto passava as compras. Saí e, quando me dei conta de que meu companheiro não estava no meu bolso, voltei correndo. Era tarde. Senti-me como se alguém tivesse invadido a minha casa, mexido nas minhas coisas, se apoderado de minhas lembranças e vivências.

Ah, por que os celulares não são como antigamente, que faziam apenas chamadas? Maldito Steve Jobs!

E, ironicamente, o furto aconteceu porque, ultimamente, ando com a cabeça cheia de preocupações, coisas para decidir e fazer. Coisas que, infelizmente, um aparelho eletrônico não pode armazenar. Acreditem, ou não, a tecnologia tem suas limitações!

Meu bom e caridoso marido me deu o Xperia dele. Ele diz que não gosta do aparelho, que prefere o seu Nokia de cinco anos atrás. Realmente é um aparelho excelente, mas acho mesmo que ele ficou com pena de mim. Digo isso porque eu chorei tanto a perda do meu Xperia! De raiva, acima de tudo. Uma gota d’agua que não precisava, neste momento. Se não bastassem os problemas, ainda tenho que bloquear a linha, refazer a agenda (porque não transferi os dados do celular para o computador???), ir à polícia e... as fotos! Quero minhas fotos de volta!!!

Diante da minha histeria, o maridão, de novo, tomou as rédeas, bloqueou tudo em alguns minutos. Como é bom ter alguém que te estenda a mão quando você precisa, que te enxuga as lágrimas, que te escuta com paciência quando você reclama da vida, que te sorri quando você faz besteira!

Existem tantas coisas boas e simples na vida que podem nos fazer feliz e, mesmo assim, estamos sempre resmungando pelos cantos sem notar que, a simplicidade está sendo deixada para trás, como algo inútil e ultrapassado enquanto damos espaço demais para o que deveria tornar nossas vidas mais fáceis, nos escravizamos, tornamo-nos dependentes de tantas coisas, tantas pequenas coisas!

No dia seguinte, soube que a mãe de um colega de classe da minha filha havia morrido de acidente de carro, alguns dias antes, e lá estava ele, na escola, tentando tocar a vida adiante. Um menino de sete anos que nunca mais teria a sua mãe de volta.

Aos poucos estou pegando os endereços e fones de contatos novamente. Quando estiver com meus filhos, farei novas fotos.

Nada que podemos armazenar em chips pode ser tão importante, afinal. 

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